Escrito por Carlos Eduardo B. Calvani, no Mestres – Teologia & Debates
Sou um professor de Teologia em crise com a dificuldade que eu e
outros colegas enfrentamos nos últimos anos diante dos novos
seminaristas enviados para as faculdades de teologia evangélica. Tenho
trabalhado como Professor em Seminários Evangélicos desde 1991 e,
tristemente, observo que nunca houve safras tão fracas de vocacionados
como nos últimos três anos.
No início de meu ministério docente, recordo-me que os alunos
chegavam aos seminários bastante preparados biblicamente, com uma visão
teológica razoavelmente ampla, com conhecimentos mínimos de história do
cristianismo e com uma sede intelectual muito grande por penetrar no
fascinante mundo da teologia cristã. Ultimamente, porém, aqueles que se
matriculam em Seminários refletem a pobreza e mediocridade teológica que
tomaram conta de nossas igrejas evangélicas.
Sempre pergunto aos calouros a respeito de suas convicções em relação
ao chamado e à vocação. Pois outro dia, um calouro saiu-se com a
brilhante resposta: “não passei em nenhum vestibular e comecei a sentir
que Deus impedira meu acesso à universidade a fim de que eu me dedicasse
ao ministério”…
A grande maioria dos novos vocacionados chega aos Seminários
influenciada pelos modismos que grassam no mundo evangélico. Alguns se
autodenominam “levitas”. Outros, dizem que estão ali porque são
vocacionados a serem “apóstolos”. Ultimamente qualquer pessoa que canta
ou toca algum instrumento na Igreja, se autodenomina “levita”. Tento
fazê-los compreender que os levitas, na antiga aliança, não apenas
cantavam e tocavam instrumentos no Templo, como também cuidavam da
higiene e limpeza do altar dos sacrifícios (afinal, muito sangue era
derramado várias vezes por dia), além de constituírem até mesmo uma
espécie de “força policial” para manter a ordem nas celebrações.
Porém, hoje em dia, para os “novos levitas” basta saber tocar três
acordes e fazer algumas coreografias aeróbicas durante o louvor para se
sentirem com autoridade até mesmo para mudar a ordem dos cultos. Outros
há, que se auto-intitulam “apóstolos”. Dentro de alguns dias teremos
também “anjos”, “arcanjos”, “querubins” e “serafins”. No dia em que
inventarem o ministério de “semi-deus” já não precisaremos mais sequer
da Bíblia.
Nunca pensei que fosse escrever isso, pois as pessoas que me conhecem
geralmente me chamam de “progressista”. Entretanto, ultimamente, ando é
muito conservador. Na verdade, “saudosista” ou “nostálgico” seriam
expressões melhores. Tenho saudades de um tempo em que havia um
encadeamento lógico nos cultos evangélicos, em que os cânticos e hinos
estavam distribuídos equilibradamente na ordem do culto. Atualmente os
chamados “momentos de louvor” mais se assemelham a shows ensurdecedores
ou de um sentimentalismo meloso. Pior: sobrepujam em tempo e importância
a centralidade da Palavra e da Ceia nas Igrejas Protestantes. Muitas
pessoas vão à Igreja muito mais por causa do “louvor” do que para ouvir a
Palavra que regenera, orienta e exige de nós obediência. Percebo que
alguns colegas pastores de outras igrejas freqüentemente manifestam a
sensação de sentirem-se tolhidos e pressionados pelos diversos grupos de
louvor. O mercado gospel cresceu muito em nosso país e, além de
enriquecer os “artistas” e insuflar seus egos, passou a determinar até
mesmo a “identidade” das igrejas evangélicas. Trata-se da “xuxização”
(“todo mundo batendo palma agora… todo mundo tá feliz? tá feliz!”) do
mundo evangélico, liderada pelos “levitas” que freqüentemente aprisionam
ideologicamente os ministros da Palavra. O apóstolo Paulo dizia que a
Palavra não está aprisionada. Mas, em nossos dias, os ministros da
Palavra, estão – cativos da cultura gospel.
Tenho a impressão de que isso tudo é, em parte, reflexo de um antigo
problema: o relacionamento do mundo evangélico com a cultura chamada
“secular”. Amedrontados com as muitas opções que o “mundo” oferece, os
pais preferem ter os filhos constantemente sob a mira dos olhos aos
domingos, ainda que isso implique em modificar a identidade das Igrejas.
E os pastores, reféns que são dos dízimos de onde retiram seus
salários, rendem-se às conveniências, no estilo dos sacerdotes do Antigo
Testamento. Um aluno disse-me que, no dia em que os evangélicos tomarem
o poder no Brasil acabarão com o carnaval, as “folias de rei”, os
cinemas, bares, danceterias etc. Assusta-me o fato de que o
desenvolvimento dessa sub-cultura “gospel” torne o mundo evangélico tão
guetizado que, se um dia, realmente os evangélicos tomarem o poder na
sociedade, venham a desenvolver uma espécie de “Talibã evangélico”. Tal
como as estátuas do Buda no Afeganistão, o “Cristo Redentor” estará com
os dias contados.
Esses jovens que passam o dia ouvindo rádios gospel e lendo textos de
duvidosa qualidade teológica, de repente vêm nos Seminários uma grande
oportunidade de ascensão profissional e buscam em massa os seminários.
Nunca houve tanta afluência de jovens nos seminários como nos últimos
anos. Em um seminário em que trabalhei, os colegas diziam que a Igreja,
em breve teria problemas, pois o crescimento da Igreja não era
proporcional ao número de jovens que todos os anos saíam dos Seminários,
aptos para o exercício do ministério. A preocupação dos colegas era:
onde colocar todos esses novos pastores? Na minha ingenuidade, sugeri
que seria uma grande oportunidade missionária: enviá-los para iniciarem
novas comunidades em zonas rurais e na periferia das cidades. Foi então
que um colega, bastante sábio, retrucou: “Eles não querem. Recusam-se!
Querem as Igrejas grandes, já formadas e estabelecidas, sem problemas
financeiros”.
Na maioria dos Seminários hoje, os alunos sabem o nome de todas as
bandas gospel, mas não sabem quem foi Wesley, Lutero ou Calvino. Talvez
até já tenham ouvido falar desses nomes, mas são para eles, como que
personagens de um passado sem-importância e sobre o qual não vale a pena
ler ou estudar. Talvez por isso eu e outros colegas professores nos
sintamos hoje em dia como que “falando para as paredes”. Nem dá gosto
mais preparar uma aula decente, pois na maioria das vezes temos sempre
que “voltar aos rudimentos da fé” e dar aos vocacionados o leite que não
recebem nas Igrejas. Várias vezes me vi tendo que mudar o rumo das
aulas preparadas para falar de assuntos que antes discutíamos nas
Escolas Dominicais. Não sei se isso acontece em todos os Seminários, mas
em muitos lugares, o conteúdo e a profundidade dos temas discutidos
pouco difere das aulas que ministrávamos na Escola Dominical para
neófitos.
Sei que muitos que lerem esse desabafo, não concordarão em nada com o
que eu disse. Mas não é a esses que me dirijo, e sim aos saudosistas
como eu, nostálgicos de um tempo em que o cristianismo evangélico no
Brasil era realmente referencial de uma religiosidade saudável,
equilibrada e madura e em que a Palavra lida e proclamada valia muito
mais que o último CD da moda.